Assisti a uma reportagem sobre o acampamento de refugiados em Calais, na França. Pessoas em situação extrema, altamente vulneráveis, sem direitos, sem lugar. Pessoas que querem apenas sobreviver, que constróem cabanas de lona e madeira e transformam em um lar - ainda que temporário - as poucas coisas conseguem juntar. Existe esperança para qualquer um que busque dignidade. Isso demonstra apreço pela vida, energia para preservar a humanidade fundamental.
A pequena sociedade se formou e criou uma rotina. Surgiram prestadores de serviço: cabeleireiros, costureiras, vendedores, babás. Voluntários improvisaram salas de aula e enfermarias. A vida é implacável e insiste em passar por cima dos obstáculos, agarra com mãos obstinadas e trêmulas qualquer pedaço de chão que possa suportar o peso do corpo, da família, do abrigo, da fé.
Um iraniano abriu um restaurante em um barracão de lata e lona. Na parede, um pedaço de espelho quebrado, luzinhas coloridas e flores de plástico. Ele trabalha muito e consegue um dinheiro: já mandou 100 euros para a família. Há um balcão, repleto de bandejas com comida fumegante, colorida, apetitosa, viva. Onde há vida, há crianças brincando e comida sendo feita.
A comida é tão simples quanto essencial. Ela nos lembra de que somos humanos, que precisamos do sabor e da beleza para sobreviver. A quem sabe cozinhar, nunca faltam trabalho e companhia.
O dono do restaurante sabia que seu barracão seria posto abaixo em questão de horas. A operação da polícia francesa tinha por objetivo acabar com o acampamento clandestino. Porém, sua expressão não era de derrota, mas de certeza de que, qualquer que fosse o seu destino, ele cozinharia para os seus e para os outros, amenizando a dureza e a crueldade do mundo, despertando, com um prato de comida, a coragem em cada um. O barracão vai ruir, mas não importa, os estômagos e almas levam consigo o gosto pela vida.
Aquele homem nos mostra como é preciso tão pouco para fazer uma boa comida. Como perdemos o contato com a simplicidade do alimento, da partilha, da fumaça cheirosa despertando os apetites e acalentando os medos. Fiquei com vontade de produzir tudo o que eu como. Ter uma cabra para dar leite, uma galinha para os ovos, uma horta enorme, um forno de barro, um fogão a lenha. É claro que isso não vai acontecer. O chão que habito é de concreto e pressa.
Mas, para amenizar o desejo pelas coisas simples e grandiosas, fui para a cozinha fazer pão. Amassar com devoção e transformar em alimento a mistura pegajosa de farinha. Cheiro de pão na casa acalma o coração e desperta as ideias. Pão caseiro, panela de barro no fogão, ramo de tempero arrancado do vasinho no quintal. E a certeza de que a verdadeira comida não está nos restaurantes luxuosos, nas embalagens de alimentos processados, no macarrão instantâneo, nos pacotinhos de tempero do mercado. A essência da comida e o dom de cozinhar estão em nós, e seja qual for o nosso chão, sempre haverá pão.